O desfile cívico de 7 de Setembro em Conceição do Coité deste ano ficará marcado pela emoção e pela memória. Entre as alas que coloriram as ruas da cidade, um destaque especial foi dado a Maria Neves, a eterna Maria Palheira, e a seu filho, o professor, poeta e cordelista Carlos Neves.
A dupla homenagem simbolizou não apenas o reconhecimento individual de suas trajetórias, mas também a força da cultura nordestina transmitida de mãe para filho.
O tributo no Centro de Ensino Menino Jesus – CEMJ
O Centro de Ensino Menino Jesus (CEMJ), fundado pela saudosa professora Noelinda Rocha, levou para as ruas a temática “Brasil, um Livro Aberto”. Em uma das alas, a escola destacou os escritores coiteenses, incluindo Carlos Neves, que ganhou visibilidade pela sua produção literária e pela difusão da literatura de cordel.

A homenagem carrega ainda mais significado pela história de vida do poeta com o CEMJ. Nos anos 1970, Noelinda conheceu a família de Maria Palheira e Clemente Freitas, vinda da zona rural em situação de extrema pobreza. Encantada com a inteligência de um menino chamado Carlinhos de Dona Maria de Clemente — o hoje conhecido Carlos Neves —, tentou adotá-lo legalmente, mas acabou acolhendo-o como filho de coração.
O destino fez com que, anos depois, Carlos e Noelinda se reencontrassem. Já adulto, ele trabalhou no Bradesco e na UNEB – Campus XIV, e Noelinda se tornou uma admiradora de suas inúmeras qualidades, sobretudo as literárias. Durante seus estudos na universidade e na pós-graduação, utilizou textos e poesias dele em trabalhos acadêmicos. Coincidentemente, a última poesia que ouviu, ainda no hospital, foi de autoria do amigo e “filho do coração”.

Após o falecimento de Noelinda, sua filha Carol assumiu a direção do CEMJ e fez questão de manter essa ligação. Convidou o artista Trigo Tatuador para eternizar a imagem de Noelinda em um grafite no pavilhão da escola, ladeada por versos de Carlos Neves. Em 2025, a escola voltou a exaltar sua obra no desfile cívico, reafirmando a importância da literatura de cordel e das xilogravuras.
A homenagem da rede municipal
Além do CEMJ, que levou para a avenida uma ala com alunos desfilando em camisas estampadas com fotografias de escritores coiteenses — entre eles Carlos Neves —, a rede municipal de ensino também prestou tributo especial. Em um carro alegórico, uma escultura feita em sisal retratava Maria Palheira ao lado de seu filho Carlos, obra do artista Lucas Afonso, reforçando a memória da matriarca cuja trajetória está cada vez mais presente na história cultural de Coité.

“O ano de 2025 é especialmente simbólico, trazendo à tona o nome de Maria Palheira em diferentes momentos: Primeiro aniversário do Museu Municipal de Conceição do Coité, que leva seu nome; Centenário de seu nascimento (1925–2025); Cinquentenário de sua morte (1975–2025); Tema da Quadrilha Junina JC, premiada em diversos concursos na Bahia; E a homenagem no desfile cívico municipal. Uma justa homenagem em versos”, ressaltou emocionado Carlos Neves sobre a trajetória de sua mãe analfabeta, mas que sabia o valor do conhecimento e se esforçou para que ele tivesse um futuro brilhante na educação.
O poeta Carlos Neves escolheu a poesia como forma de eternizar a simplicidade e a grandeza de sua mãe. No cordel “Uma Justa Homenagem”, ele escreve:
Deus justo, de amor fiel
Nunca tarda, nunca falha
Seu tempo é certo, é preciso
O seu agir não encalha.
Quem tem fé, vê Deus em tudo
Vê na voz presa do mudo
Que nos fala por sinais…
Vê nas mãos das rezadeiras
Nas sábias velhas parteiras
Nas sabenças raizeiras
Dos griôs, dos ancestrais…
Vê nas lutas sociais
Em prol dos melhores dias
Não O vê em fake news
Das mentes sádicas, vazias…
Sem precisar de Wi-fi
Quem quiser acesso ao Pai
A senha é fé e oração.
Jesus Cristo é o provedor
Seu link se chama amor
Na rede do Redentor
Transcendentalização (…)
Eis, portanto, a explicação
Dessa justa homenagem
A uma mulher tão simples
Que já fez sua passagem.
Sem cova, sem mausoléu
Partiu crendo que no Céu
Ganharia seu galardão.
Por tudo que ela viveu
Penso qu´ela mereceu
Ter na Terra o nome seu
Na imortalização.
Num mundo de ostentação
Ganância, fama, poder…
Nome de pobre é raríssimo
Em homenagem de se ver.
Graças a Deus, ao bom senso
Apoio, Câmara, consenso
E às coisas serem bem feitas
À luz da vida e da arte
Na educação baluarte
Diferenças ficam à parte
Contam-se as ações perfeitas.
Maria Neves de Freitas
É dessas mães aguerridas
Sobreviventes das surras
Nos percalços de suas vidas
Que mostram as mãos calejadas
De tanto puxar enxadas
E cortar lenha com machado…
Fez chapéu, aió, esteira
Vendeu licuri na feira
Lavou roupa, foi fateira…
Pra manter seu nome honrado.
Também cuidava do gado
Lá na Fazenda Galheiro
Ajudando seu marido
Seu Clemente – o vaqueiro.
Seguiam os dois aboiando
Tangendo bois, pastorando
Pondo as vacas no curral…
Tirar leite, destocar
Fazer cerca, capinar
Cavar um tanque ou limpar…
Em tudo, a força braçal.
A base fundamental
Para “Maria de Quelé”
Era criar e educar
Seus filhos no amor, na fé
Na esperança que um dia
Algum lhe desse a alegria
De amenizar sua lida.
De ir estudar, se formar
Ter bom emprego, voltar
E lhe ajudar a encontrar
Uma luz, uma saída…
A sua voz foi ouvida
Pelo Senhor Nosso Deus
Que o ano meia sete (1967)
Ungiu um dos filhos seus
O seu décimo sexto filho
Que trazia no olhar o brilho
Por cultura e educação.
Mudou-se para a cidade
Superou fome, saudade
Preconceito, dor, maldade…
Seguiu firme no vagão.
E nessa “nova estação”
Seu filho pode encontrar
Passageiros solidários
Que lhe ajudaram a pensar
Projetos transformadores
De vida, de paz, de valores
À luz da dignidade…
E em Coité, resolveu
Pôr em prática um sonho seu:
Celebrar com um MUSEU
Multiculturalidade (…)
Um presente pra cidade
Território e região
Um fomento ao estudo
À pesquisa, à extensão…
Manter viva a nossa história
Zelar por nossa memória
Ampliar conhecimento.
Se o papel da educação
É fazer transformação
Surge esse gesto, essa ação
Esse forte suplemento.
Como, se num julgamento
É de praxe encaminhar
O projeto pra a câmara
E torcer para ela aprovar.
Uma vez ele aprovado
Sancionado e publicado
Sem quaisquer dúvidas, suspeitas
A região sisaleira
Verá, pela vez primeira
Placa de honra à palheira
MARIA NEVES DE FREITAS.
*Poema da autoria do Poeta coiteense CARLOS NEVES FREITAS em homenagem a sua mãe, o qual foi encaminhado à Câmara Municipal para a criação do Museu Municipal MARIA NEVES FREITAS – (Maria Palheira)